Por Allan Novaes
O jornalismo aborda o escândalo porque vende mais ou vende mais porque aborda o escândalo? Uma coisa é certa: leitores e jornalistas adoram escândalo, ou no mínimo sentem-se atraídos por ele - o que no final das contas acaba dando no mesmo: o prazer pela polêmica.
O escândalo de temática religiosa é um dos mais rentáveis. E a imprensa sabe muito bem disso. O crescente número de periódicos e programas de TV que veiculam matérias religiosas e polêmicas na última década prova que o conflito ciência versus crenças é pauta abundante.
É um incômodo danado para cidadãos comuns verem sua fé e valores sendo desafiados. Então, eles buscam saciar a curiosidade. No fundo, isso é só fachada para sua busca por respostas. Afinal, se a Bíblia é apenas um apanhado da cultura judaica na forma escrita, o que fazer com os anos de leitura das Escrituras (que nem mais sagradas são) e com as visitas semanais à igreja? E o dinheiro que saiu do bolso por causa dos princípios bíblicos do dízimo? O resultado: ibope às alturas e exemplares esgotados nas bancas.
Quando se fala de religião, não há outra personalidade mais polemizada do que Jesus. Ele é a maior figura dos dois últimos milênios e suas doutrinas afetam direta ou indiretamente bilhões de pessoas. Mas como a mídia tem retratado Jesus Cristo nos últimos anos? Um breve panorama dessa abordagem revela o quadro clínico em que se encontram os jornalistas que se arriscam a falar do judeu de Nazaré.
Mesmo sem assumir o discipulado da polêmica, cujo princípio de ouro é o escândalo, a mídia monta um verdadeiro mosaico de informações e teorias que trazem descrédito às crenças e dogmas religiosos antes do que estabelecer informações claras ao leitor de quem é Jesus. Vejamos.
Combatividade e pretensão
A Superinteressante de abril de 1996, cuja manchete "É semana santa, mas quem é Jesus?", acompanhada da imagem de Cristo em quebra-cabeça, traz no primeiro parágrafo da seção "Como rastrear a verdade sob o mito" as seguintes palavras:
"Cristo nasceu antes de Cristo, no ano 7 a.C. Nosso calendário romano-cristão está errado, já devíamos estar no ano 2001. Tampouco há evidência de que o Natal seja em 25 de dezembro, porque não se sabe em que mês Jesus nasceu. A data de dezembro foi fixada pela Igreja no ano 525 para coincidir com festas pagãs do Oriente e de Roma. E, de acordo com as pesquisas, Jesus não nasceu em Belém, na Judéia, mas em Nazaré, na Galiléia, norte de Israel. [...] Para a maioria dos pesquisadores os reis magos, o presépio e a estrela de Belém são invenções dos evangelistas para identificar o nascimento de Jesus com a vinda do Messias, que já era anunciado no Velho Testamento. A expressão é profana mas vale: há muito marketing político nos evangelhos."
Na edição de dezembro de 2000, a Galileu reage de modo parecido. As mesmas informações polêmicas são apresentadas, mas dessa vez elas permeiam todo o texto da reportagem de capa ("O desafio de explicar Jesus e o sentido do Natal"), ora em boxes, ora em olhos. "No tempo ele não ofereceu a outra face, mas virou a mesa"; "Os evangelhos não podem ser tomados ao pé da letra"; "Ele não nasceu na era cristã nem no dia 25 de dezembro".
Que o jornalista tem o dever de informar a verdade, todos sabem. Jesus de fato não nasceu no dia 25 de dezembro e um monge cometeu um equívoco na contagem de datas do nosso calendário, por incrível que pareça. Essa é a verdade. No entanto, a maneira truculenta como foram apresentadas as informações religiosas soam como afrontas.
Frases contundentes que atacam o senso comum e as crenças religiosas revelam mais do que a verdade. Evidenciam um ceticismo amargurado, uma postura rebelde contra crenças e dogmas religiosos, o que compromete a imagem de imparcialidade. A intenção deveria ser informar o leitor e não ofendê-lo ou chocá-lo por meio de um discurso de teor combativo. Mesmo o relato da verdade não deveria ser desculpa para apresentar informações importantes usando o sensacionalismo.
A escolha desse estilo polêmico ao se tratar de Jesus pode causar no leitor a sensação de que seus valores e crenças estão sendo desafiados. Pior. Ele pode interpretar um discurso desafiador como uma afronta. E essa pode ser a real intenção do jornalista.
Tão desastroso quanto ofender o leitor por assumir nas entrelinhas uma posição antirreligiosa é assumir um discurso de verdade absoluta quando se trata apenas de teorias e hipóteses. Títulos como "A verdadeira história de Jesus" (Super, dezembro/2002) deixam transparecer a parcialidade do profissional e sua disposição antidogmática e antiinstitucional, além de manifestar sua tendência em polemizar o tema com uma linha de descoberta inédita ou verdade irrefutável. As outras histórias de Jesus são todas falsas, então?
A pretensão do veículo é tanta que nesse título o leitor incauto tem a impressão de que está investindo na maior descoberta do milênio ao adquirir o periódico. Sensação essa que daria lugar para a frustração quando lesse a matéria no interior da publicação.
Escândalo versus conservadorismo
O problema, obviamente, não está em dizer a verdade. Este é um dever do jornalista. A questão é como e por que dizê-la. Assuntos polêmicos, mesmo quando tratados por jornalistas, envolvem uma mistura de ódio e polidez, opinião e paixão.
Jacques Waiberg, Jorge Campos e Edelberto Behs, no artigo intitulado "Polemista, personagem esquecido do jornalismo", na edição de janeiro/junho de 2002 da Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, afirmam que a razão para se explorar assuntos polêmicos no fundo é sempre a mesma: desafiar crenças, produzir mal-estares, quebrar dogmas. Os três acadêmicos declaram que o polemismo em sua essência dedica-se à eternização do conflito. É romper com o trivial e tornar o senso comum absurdo.
Para eles, esse procedimento é ameaçador, pois desqualifica o equilíbrio existente e abala a autoestima de quem se considerava proprietário de verdades absolutas. Verdades estas, lembram o trio, muitas vezes obtidas mediante envolvimento existencial.
A revista Época de 14/4/03 é um exemplo de como a imprensa brasileira, com poucas exceções, contaminou-se com essa tendência polemista sobre Jesus. Segundo o próprio texto de capa da revista, a reportagem traz "revelações sobre a existência de um irmão de Cristo, o avô milionário e outras novidades ocultas pelos textos oficiais da Igreja".
A matéria parece ter como único objetivo trazer as "novidades" (como ela mesmo define) sobre a pessoa de Jesus encontrada em documentos apócrifos rejeitados pela Igreja Católica.
Pouco importa informar que os documentos apócrifos foram escritos por volta dos séculos II e III da era cristã, diferentemente dos evangelhos canônicos, cujos autores foram discípulos de Jesus ou testemunhas da época. Embora a matéria toda esteja embasada nos livros apócrifos, não é mencionado que não somente a Igreja, mas teólogos e scholars do Novo Testamento concordam que esses escritos foram produzidos para satisfazer uma curiosidade religiosa e carecem de veracidade.
Dessa forma, a reportagem de Época retrata a realidade da imprensa brasileira: o escândalo. Pior do que trazer informações verdadeiras e necessárias com roupagem sensacionalista e teor combativo é transformar especulações e teorias em verdade absoluta.
Uma vez que o escândalo é o que promove a confecção da matéria, ela não consegue trazer em si nada de sólido a não ser a declaração espetacular, a descoberta bombástica, a especulação polêmica. Assim, assume-se o seguinte princípio: "a verdade tem de ser dita, mas desde que seja nova". Se houver um confronto entre a novidade e a verdade, vence a novidade.
Seguindo esse raciocínio, veem-se matérias com perfil sensacionalista e que buscam atrair os leitores pela contestação do senso comum e das crenças. É a velha história de se exibir hipóteses (às vezes pouco fundamentadas) como sentenças finais.
Tragicamente, obras com esse teor são rebatidas com tanto afinco por especialistas que acabam caindo em descrédito. É o caso do livro The Bible Unearthed, cujas ideias foram usadas na matéria de capa da Superinteressante ("Bíblia, o que é verdade e o que é lenda", julho/2002). Meses depois de lançar o livro o autor admitiu em entrevistas ter errado em algumas conclusões que obtivera.
Mas será que a Super admitiria algum erro na confecção da matéria? Curiosamente, livros ditos conservadores como o do ex-jornalista investigativo do Chicago Tribune, Lee Strobel, Em Defesa de Cristo, não estão sob os holofotes da mídia. Pensando bem, por que estariam? Livros assim não fazem barulho.
Prós do escândalo
A essa altura, o escândalo na imprensa é visto com mais repugnância do que de fato aparenta. Está mais feio do que realmente é. No entanto, o escândalo tem suas vantagens. Afinal de contas, tudo costuma ser bem-vindo quando atrai leitores ou audiência.
O estudo já mencionado do trio Wainberg, Campos e Behs aponta os prós da polêmica no jornalismo. Desse estudo, realizado originalmente visando o jornalista-polemista, relaciona-se os benefícios do uso do escândalo para se abordar a figura de Jesus.
Ao desafiar o senso comum e as instituições, a imprensa demonstra a autonomia que a faz livre e pregadora da liberdade. Obviamente, o jornalismo tem ao seu lado número incontável de pessoas quando se propõe a defender a verdade. Mas é necessário enfatizar: apoio quando se tem a verdade.
Sem essa coragem de defender a verdade custe o que custar, não haveria tanto avanço no conhecimento. As pessoas poderiam continuar a viver com a mentalidade medieval, sem usufruir as descobertas da ciência. A imprensa contribui para a popularização do conhecimento e, quando este é verdadeiro e útil, beneficia a todos que estiverem sob sua esfera de influência. Quando acerta, ela faz com que o verdadeiro Jesus se torne mais conhecido e que a religião se aproxime mais da ciência.
Além disso, um dos maiores benefícios do escândalo é que a polêmica e o escândalo estimulam o debate de ideias, a permuta do conhecimento.
Confusão informativa
Mesmo com o estímulo ao debate e o "abrir dos olhos", o grande perigo das reportagens que insistem em aderir ao sensacionalismo em torno de Cristo é fazer com que o leitor fique mais ignorante ou confuso em relação ao assunto do que era antes de ler a matéria.
Embora pareça estranha, a teoria da confusão informativa está em voga no meio jornalístico e foi bem explanada no livro Jornalismo e Desinformação, de Leão Serva. Quanto mais se informa, menos se informa.
Ao despejar informações incomuns sobre Jesus ao leitor comum, com crenças comuns, corre-se o risco de promover uma legítima confusão de informações. Se cada vez que surge uma teoria excêntrica sobre Cristo - seu pai era milionário, ele casou-se com Maria Madalena e depois a abandonou, ele era essênio, entre outras -, sua imagem irá se tornar inconstante. Criar-se-á um mosaico de estereótipos indefinidos na mente do leitor.
A tendência será a seguinte: o leitor não apreende a novidade (porque elas são muitas e mudam constantemente) e acaba por abandonar a crença antiga. Respostas não são oferecidas ao leitor, apenas a contestação de dogmas e crenças.
O resultado é a formação de leitores cada vez mais confusos em relação à pessoa de Jesus. Leitores que não saberão quem é Jesus de fato, mas defenderão com unha e dentes o que aprenderam com a visão da imprensa: que o senso comum, a tradição e as instituições religiosas estão errados.
Tais reportagens, como sugerem os títulos de algumas (geralmente baseadas na pergunta "quem é Jesus?"), não atingem o objetivo que o lead ou a manchete propõem. Parecem mais com um guia dos curiosos do que com uma reportagem que intenciona explicar a pessoa de Jesus.
São reportagens que partem de lugar algum e chegam a canto nenhum. Elas iniciam e finalizam sem objetivo, sem propósito, a não ser o de informar as "novidades" sobre Cristo. São adeptas da propaganda enganosa, pois prometem algo que não cumprem. O texto é uma mistura de declarações de especialistas com novidades excêntricas da ciência que atrapalha mais do que auxilia, confunde mais do que instrui.
Assim, a contradição da imprensa faz com que a lógica do barulho torne-se compreensiva. Se não há quase nada novo a se descobrir sobre Jesus, o segredo é fazer com que hipóteses extravagantes e teorias incomuns ganhem espaço. Vale tudo para atrair o leitor, afinal, Jesus vende. E muito.
Outro motivo pelo qual a imprensa estaria se engajando para atrair os leitores para uma imagem não-convencional de Cristo é a própria disposição cética e antidogmática de muitos de seus profissionais. Curiosamente, a última motivação para a imprensa cometer a lógica do barulho é o chamado estigma de Tomé. O jornalista é treinado para duvidar de tudo e essa insistência em querer cavar fundo faz com que ele nunca se satisfaça com o que já foi descoberto. Isso o torna menos preso a convenções sociais ou religiosas e ao mesmo tempo o torna mais propenso a errar.
Pode vir algo bom da mídia
Sabendo que a compreensão do Cristo real é praticamente estática, a mídia deveria preocupar-se em contextualizar sua figura e seus ensinamentos e aplicá-las à realidade do homem moderno. Fazer o leitor entender como a ideologia cristã permeia todos os mecanismos da sociedade ocidental, sua relação com a ciência, com a democracia, com a política, enfim, dar ao tema a profundidade e seriedade que ele exige.
Exemplos dessa postura são as edições 20 de dezembro de 2000 e 25 de dezembro de 2002, das revistas IstoÉ e Veja, respectivamente. Enquanto a IstoÉ relaciona a personalidade de Jesus a uma análise do poder político, com a estética e a arte e com o boom pentecostal, Veja demora-se nas discussões em torno dos conceitos sobre Jesus nos séculos da era cristã, na infiltração dos princípios do cristianismo no cotidiano das civilizações ocidentais e até orientais e na sobrevivência da fé em uma sociedade cética.
Por fim, espera-se que os jornalistas lancem fora a pretensão de proclamar teorias excêntricas como verdades irrefutáveis. Que isso seja responsabilidade apenas de especialistas e intelectuais.
Fonte:
Sessão: Debate
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