segunda-feira, 12 de julho de 2010

(Lição 02) A superdecepção de Galileu

Por Fernando Torres
Se o matemático, físico, astrônomo, inventor e filósofo, Galileu Galilei (1564-1642) ressuscitasse, iria se deparar com um mundo bem diferente do que deixou. Teísta, o astrônomo que fez diversas referências a Deus em seus trabalhos - apesar de crer que muitas das interpretações feitas pela Igreja se baseavam em interpretações errôneas e anticientíficas - encontraria seu nome relacionado a uma revista que se propõe a refutar argumentos bíblicos. Ficaria Superdecepcionado.

Caracterizadas por abordarem matérias de divulgação científica, as revistas Superinteressante e Galileu sempre dão um jeitinho de abordar a temática "religião". Os diretores das revistas argumentam que o escopo do termo "ciência" vai além do campo das ciências exatas. "A aventura humana contraditória e espetacular, nos encanta tanto quanto os átomos e as moléculas", expressa Adriano Silva, diretor de redação da Super, em editorial (7/02). Inclui-se nas pautas das mensais as áreas mais subjetivas do saber humano, como história, filosofia, semiótica e psicologia.

Só em 2001 e 2002, a Super trouxe cinco capas de tema religioso (ver foto). A revista se escondeu sob um manto de imparcialidade, variando entre diversas segmentações, como islamismo, cristianismo e espiritismo. Caminhou, no entanto, por uma trilha não-aconselhável, pelo menos no tocante ao jornalismo.

Entre todas as edições, destaca-se a de julho de 2002, com o título "Bíblia - O que é verdade e o que é lenda". A matéria despeja uma enxurrada de afirmações categóricas sobre o relato bíblico, desmentindo-o. "O que se sabe com certeza é que Jesus foi um judeu sectário e um agitador político que ameaçava levantar dois milhões de judeus da Palestina contra o exército de ocupação romana. Tudo o mais necessita da fé para ser considerado verdade", diz uma das legendas.

Para compor a matéria, a Super se baseia apenas em um viés do problema, extinguindo o outro. Beirando o sensacionalismo, a revista coloca os "fatos" como única opção legítima de verdade absoluta. Rejeita completamente a fé, postando-se ao lado de uma ciência(?) vesga e unilateral. Ao fazer as afirmações, a Super não se preocupa em comprová-las, baseando-se apenas em declarações de arqueólogos e afins.

Numa espécie de link à discutida matéria sobre a Bíblia, no mês seguinte (8/02) a Super montou uma reportagem não menos tendenciosa sobre a necessidade do homem de confiança. Intitulada "Programado para a fé", a matéria afirma existir uma base biológica para a crença humana: o cérebro estaria configurado para a fidelização do homem. De acordo com a reportagem, símbolos sagrados serviriam de ativação do sistema límbico, "facilitando a transição para os estados alterados de consciência".

O final da reportagem não estaria mais de acordo com o conteúdo: "Até que se alcance um consenso, só a fé, seja numa teoria científica ou num dogma [por que não substituir "dogma" por uma "crença infantil"?], será capaz de responder se Deus é uma criação de nosso cérebro ou se nosso cérebro foi criado por Deus".

Quando trata de Islamismo (11/01), a Super destaca os trechos do Alcorão que tratam de violência. Vale ressaltar que praticamente todas as mídias ocidentais visualizam os muçulmanos de forma negativa. Moldam no receptor um pensamento preconceituoso em relação a eles. Super só fez repetir o embate entre o bem e o mal, reafirmando que a agressividade islâmica provêm de Alá. "Matai os idólatras, onde quer que os acheis", distingue em legenda.

Allan Kardec, Dalai Lama e Buda também tiveram seu espaço na Superinteressante. O curioso é que agora as chamadas favoreciam as ditas religiões. A do espiritismo (9/02), por exemplo, ressaltava que o Brasil é o País com maior número de adeptos do mundo. A do budismo, definia a religião como fascinante, pois seu seguidor não precisa de um deus. Para completar a trindade - sugestivo, não? - a figura de Dalai Lama é evocada com adjetivos típicos: sabedoria, simpatia, simplicidade e felicidade. Perfeito. Principalmente para atender os interesses comerciais do capitalismo.

E Galileu? Entre as capas da concorrente da Editora Abril, destaca-se a de julho de 2002, que trouxe estampado o título "Deus: Precisamos dele?", indicando uma possível indiferença ou, quem sabe, uma aproximação. Entretanto, a verdadeira temática da reportagem falava sobre a fé, tentando explicar por que a crença em "uma força superior" - assim mesmo, entre aspas - aumentava em meio à tecnologia e à ciência.

A reportagem define fé como algo indispensável à humanidade, "uma espécie de ferramenta usada para encontrar o sentido de sua existência e ajudar a enfrentar as adversidades". Assim, Galileu acomoda a fraca fé do leitor com comentários do tipo: "O fato de um indivíduo não frequentar uma igreja não significa que ele não tenha algum tipo de fé" e "A ideia de que o homem é criado à imagem e semelhança de Deus é uma boa alavanca para a autoestima".

Galileu encerra a reportagem com a opinião do teólogo Fernando Altemeyer: "O mais completo ateu vai ter fé em algo que o transcenda, pode ser o amor, a música, uma obra de arte ou o trabalho". Em outras palavras: você não precisa de Deus.

Menos escancarada - mas não menos tendenciosa - uma das matérias da edição de fevereiro do mesmo ano da Galileu trouxe o título "O dilúvio - O que a Bíblia não conta". Aparentemente imparcial, a revista tenta passar a ideia de que a enchente universal não passou de lenda. O repórter conta que diversas culturas contêm lendas parecidas, como os babilônicos, por exemplo.

Além disso, completamente fora de contexto, a matéria usa declarações de teólogos cristãos(?) que duvidam da narrativa diluviana: "O dilúvio é uma representação simbólica, sem vínculo especial com qualquer evento que possa ter ocorrido há milhares de anos", afirma o teólogo Fernando Altemeyer, já citado. Para ele, e para a revista, a narrativa bíblica representa uma renovação simbólica, uma espécie de divisor de águas (bem sugestivo).

Falando no embate entre criacionismo x evolucionismo, é notável que ambas as revistas denigrem o primeiro e exaltam o segundo. Em 6/02, por exemplo, a Super abordou a teoria do planejamento inteligente, subestimando-o: "Apesar do status de ciência pretendido por seus defensores, o neocriacionismo não deixa de dar sequência, nos dias atuais, ao embate centenário entre religiosos e evolucionistas." A reportagem tenta relacionar a teoria citada com o criacionismo bíblico, apresentando-a como retrógrada, improvável e anticientífica.

Cerca de um ano antes (8/01), era a Galileu quem discutia o tema. Com o título "A religião contra-ataca", a revista da Editora Globo relata o esforço que criacionistas empreendem para tirar do currículo escolar disciplinas relacionadas à teoria do Big-Bang ou à idade da Terra. Os primeiros parágrafos da matéria já mostram qual a linha a ser adotada pelo repórter - um atenuado manifesto de indignação contra a antiintelectualidade do protestantismo estadunidense.

Por todo o texto, percebe-se a tentativa em relacionar a interferência religiosa no ensino com os fundamentalistas religiosos. Frases tendenciosas como "calcula-se que um terço dos professores [nos Estados Unidos], mal pagos e mal formados, são criacionistas"; ou a inserção clara da opinião pessoal do repórter , como "os novos criacionistas também aperfeiçoaram as táticas desde os tempos em que brandiam a Bíblia e chamavam os defensores da evolução de pecadores. (...) Chamam-se 'criacionistas científicos'", atestam uma insistente tentativa de inferiorizar a teoria criacionista e seus adeptos mediante a ironia e o sarcasmo.

Ambas as revistas revelam um caráter exageradamente racionalista ao tratar de religião. Tanto a Super quanto a Galileu esquecem-se de verificar a cartilha do jornalismo e da ciência. Desprezam a observação metódica, seguida de fiel descrição dos fatos e verificação, elementos fundamentais para o processo científico. Demonstram carência na abordagem de outros pontos de vista, manifestam tendência preconceituosa e preestabelecida, abomináveis no antro das redações.

Galileu e Super diferenciaram-se apenas na forma de se comunicar com o leitor - a primeira dissecou os fatos, trazendo uma linguagem mais acessível ao público não instruído, enquanto a segunda utilizou um vocabulário mais rebuscado, técnico e direcionado a um público especializado. Fora isso, pode-se dizer que, se tratando de religião, predominam ideias aversivas, intolerantes, ateístas e agnósticas, seja lá qual for o tipo de roupagem.

Se Galileu Galilei ressuscitasse, provavelmente se envergonharia de ver seu nome veiculado a uma revista que divulga fatos supostamente científicos. Por não pertencer ao ramo jornalístico, sua decepção com a amostra dos "fatos" não seria tão descomunal. Como cientista, no entanto, sua reação seria indescritível.

Vale lembrar que ao tratar de religião, não dá para não ser tendencioso. Eu, ainda estudante de Jornalismo o fui. Que dirá dos profissionais, PhD's em parcialidade. A diferença está em assumir.

Fonte:
Sessão: Imprensa em foco

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